Vae Victis, Renzi(!)
Dia 4 de Dezembro, a Itália tomou parte naquele que foi o mais prestigioso acto em democracia - no qual se finalmente colocou o dedo na maior das feridas, na maior das azáfamas que assomava, não só a comunidade política - e muito constava de plataformas políticas, umas mais radicais acerca da questão que outras - como a opinião pública e o modo como era enfatizado atraía muito o repúdio e a aversão à política pelo cidadão. Trata-se da questão da reforma estrutural, não da economia, mas sim do idiossincrático sistema político Italiano.
Trata-se de um sistema, em que, no que é conhecido como "bicameralismo perfeito" - que já se encontrava adotado e codificado no estatuto Albertino, de 1848 - ambas as câmaras do Parlamento possuem os mesmos poderes e direitos - um sistema único no Mundo - muitas vezes pejorado da aberração democrática da Europa, onde é engenhada uma arquitetura política, isto num contexto sócio-económico-político ainda cicatrizando as feridas do fascismo e da guerra, onde a ideia central é dificultar-se ao máximo a eficiência do governo com uma engrenagem de difícil actividade legislativa. Assim, não só se erradica a mera possibilidade da existência de governos de tendências tirânicas, onde através de um sistema de “checks and balances”, se evita a usurpação e centralização de poder político em parcas mãos (é de notar que o parlamento Italiano, ao todo, tem 945 membros). Também é um sistema que em teoria implica uma forte fiscalização pelo legislativo da atividade do governo.
De acordo com James Madison, pai não só da Democracia Americana, mas também do conceito de 'checks and balances', "o mais fiel guardião da Liberdade é o avanço e projecção de informação" - o processo democrático que saiu hoje vitorioso, ou seja, o seu mero funcionamento, ao elencar uma melindrosa e morosa engrenagem de passagem de ideia, a lei - proporciona, a qualquer banal decreto de lei um automático reconhecimento e mediatização - engrenagem que pela lei da força dificulta e impossibilita a fácil passagem de maldosa legislação, sem que antes passe pelo pente fino da opinião pública.
O Primeiro Ministro Italiano, evidente idealista, e convicto reformista, tomou - num acto que de igual modo com a experiência do PM Britânico, lhe custou o cargo - a iniciativa de trazer esta importante questão fora do armário de uma vez por todas e na hasta pública vender a sua abolição e substituição, defendendo que só num caminho traçado por um sistema político mais simples e centralizado, é que a bota da Europa marcaria o almejado golo na baliza de Buffon e efectivamente passaria de Vampeta a Chinaglia, de alvo de chacota a bota de ouro. Renzi, em referendo (que só para a sua realização passou pessoalmente pela melindrosa encrenca democrática) para o completo desmantelamento do Bicameralismo, passando pela redução de número de deputados, havendo até quem defendesse a completa abolição da câmara alta, o Senado inteiramente desnecessário e inútil. Também referendou a centralização na velha capital do Império do poder político da República - através da absorção de poderes regionais, como também passando pela abolição do Conselho nacional de economia e trabalho, assembleia de peritos nas áreas da lei, economia e teoria social, representantes de associações e de pessoas colectivas público privadas, com fim a protegê-las e apoiá-las, sem ser necessária a evocação do Estado.
Tratou-se do mais audaz ponto de agenda política de Renzi que, passou de sonho a tiro no pé (já para não falar da sua carreira). Reuniu consigo o apoio tanto do seu partido Democrático, como o Partido do antigo Delfim de Berlusconi, Angelino Alfano, o partido do antigo Primeiro Ministro tecnocrata, o "super" Mario Monti, entre outros. Já do outro lado, descordando acerrimamente com o seu Delfim, embora não sendo a razão de quebra de aliança, encontramos a favor do status quo, Berlusconi o próprio, o comediante sátiro Beppe Grillo e o seu partido populista sintético 5 estrelas, que muito têm vindo a subir nas sondagens, tendo na mais recente ronda de eleições tomado sobre sua égide um leque de importantes cidades, inclusivo a própria capital.
É de facto curioso que um referendo, cujo intuito é o de tratar da anciã questão de reformar o sistema político Italiano, tenha a ver não só, da bolha mediática, mas também da comunidade internacional, tenha sido equacionado com o Inglês, que se tratava da manutenção do país na zona comunitária. Encontram-se muito aquém da realidade, pois este não se trata de uma questão pública acerca da UE, mas sim o disputar de duas distantes visões, uma centralista contra descentralizados - transferência para o Estado ou manutenção nas mãos de quem o melhor sabe exercer, o próprio indivíduo.
Regozijo de ver que o povo Italiano soube declarar alto e bom som - em nome não só de si, mas todos aqueles que, não apoiando a liderança populista dos inúmeros movimentos soberanistas Europeus, se sentem sem voz perante a aparente inexorável transferência de poder de figuras eleitas e com responsabilização política, para obscuras entidades, politburos e nomenclaturas obscuras - que o Estado não é o melhor catalisador do sucesso da Itália, como nunca foi o melhor defensor do seu bem estar: vis à vis, basta olhar para o caso 'mani pulite' e o subsequente colapso do “pentapartido”, eixo de cinco partidos de poder em vigência à altura - o caso “tangentopoli”, ou até o voyeurismo inconcusso de Berlusconi, para mais não enumerar - igualmente na medida de não ser, de longe, o melhor custódio dos destinos do indivíduo, mas sim o próprio indivíduo - basta olhar para um livro de história e desfolhear os magnos anos 40 e tirar uma célere conclusão. Trata-se de uma conclusão de que, uma maioria, mais que qualificada, gritando afirma que a entidade mais apta a agir como 'Deus Atlas' do destino da comunidade, é a política local - basta lembrar o slogan "act local, think Global" - uma política local humanista, preocupada com “como aumentar o escopo do potencial do indivíduo” e a ele conceder cada vez mais direitos e ferramentas, ao invés da soturna visão oposta. Com este resultado, a bola encontra-se no campo dos inúmeros politburos Europeus (quantos mais haverão para a próxima semana?) - será que acautelarão à chamada de atenção, ou será o sobejo, uma ação tomada quase de modo zombie - justificada pelo zeitgeist simplesmente como sendo a indisputável "questão Coimbrã", ou seja, sendo porque sim - prevalecerá? É preciso ver que pecam logo ao se olvidarem que, como dizia a velha sabedoria anciã, "à mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta"(!).
Como sabiamente dizia o lendário rōnin Japonês, Miyamoto Musashi, "o caminho do guerreiro passa pela resoluta aceitação da morte" - parece que o eleitor Italiano, ponderando cuidadosamente os dois caminhos que se afiguravam dianteiramente, optaram pelo que induzirá a maior dor no curto prazo, mas que a longo prazo - agindo como uma resistência à cultura de “poder acumulando poder” - num acto de resistência pacífica, a sublime arte de guerra ganha antes de ser disputada, a que a Itália regrida a uma mera “República de Saló”, debaixo da égide, não de partidos Nazis, mas sim o grande cluster Europeu - optaram pela defesa de um sistema que ao gerar desgoverno, força bom governo, ao incapacitar que sucessivos governos legislem a seu belo prazer, só para ver o próximo diametralmente mudar tudo - um sistema de governo que força uma governação holistica, uma boa governação do governo que governa menos, ergo, uma governação endossada na parede, não uma governação que seja a parede que se impõe perante o indivíduo e suas ambições e sonhos. Subitamente, o argumento de que alguma instabilidade ao se intentar formar governo e passar legislação fira a ordem de funcionamento - e cujo resultado de referendo ponha em causa o bom dogma do projecto Europeu, e introduza alguma volatilidade nos mercados - não parece tão válido.
Quanto a Renzi: vaes victis - entrou numa batalha cujo adversário o levou de arremesso e logo à partida, o honrar a jura de se demitir é de louvar. Um pouco de instabilidade é um preço demasiado pequeno a ser pago pelo retardamento da quase inexorável marcha do indivíduo ao rendimento face ao Big Brother.
Haec olim meminisse iuvabit!