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"Prémio Pessoa 2016. Ainda se fazem boas escolhas..."

Frederico Lourenço é, desde a passada sexta-feira, o mais recente vencedor do prémio Pessoa. O anúncio do distinto premiado pela 30.º edição do galardão, criado pelo jornal Expresso, em 1987 e patrocinado pela Caixa Geral de Depósitos foi anunciado esta sexta-feira no Palácio de Seteais, em Sintra, por Francisco Pinto Balsemão, presidente do júri composto por ilustres personalidades da sociedade civil portuguesa, tais como: António Domingues (vice-presidente), António Barreto, Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Maria de Sousa, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião e Viriato Soromenho-Marques.


Este é um prémio que tem como princípio a distinção por via de um diploma e um cheque no valor de 60 mil euros, uma personalidade que se tenha destacado na vida cultural e científica nacional, entre os já 30 premiados sobressai-se o nome de João Lobo Antunes (neurocirurgião, premiado em 1996), Vasco Graça Moura (ensaísta e escritor, premiado em 1995), António Ramos Rosa (poeta, premiado em 1988), Eduardo Lourenço (filósofo, premiado em 2011), entre muitos outros notáveis.


Pinto Balsemão na nota de atribuição destacou a "rara erudição" do escritor, tradutor e professor universitário na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, bem como o “modo como ao longo de quase duas décadas tem vindo a oferecer à língua portuguesa as grandes obras da literatura clássica". Tradutor das obras Homero e Ilíada, e das duas tragédias de Eurípedes, Hipólito e Íon. Lourenço trabalha hoje naquela que é uma das suas maiores e significativas empreitadas e que segundo o próprio só terminará em 2020, a tradução a partir do grego antigo da chamada Bíblia Grega. O primeiro volume, que congrega os quatro evangelhos, de Mateus, Marcos, Lucas e João, já se encontra publicado pela editora Quetzal. A este volume seguir-se-ão mais cinco, com os quais se completará a tradução integral dos 80 livros (Velho e Novo Testamento) que compõem a Bíblia.


A intenção que dá mote ao projecto passa por mostrar que a Bíblia não existe, senão como o resultado das várias traduções que sofreu, apesar de essa sobreposição de traduções ter sido constantemente obliterada pelos guardiães de uma certa concepção de verdade bíblica, Lourenço acredita que as traduções não se anulam, acabando antes por se conectar entre si, para o próprio: "acrescentam-se" e estruturam-se num processo que se abre com a Bíblia Grega também conhecida como a Bíblia dos Setenta ou Septuaginta, devendo o nome aos 72 sábios judeus convidados pelo rei Ptolemeu Filadelfo para traduzir para Grego os livros da Lei, ou Torah. O pedido do rei Ptolemeu pretendia responder às necessidades da comunidade judaica de Alexandria, que não conhecia a língua hebraica. A Bíblia Grega constitui-se assim, como a primeira tradução original, feita a partir do Hebraico. Alexandria e Jerusalém cruzam-se como cidades chave para a compreensão da evolução Bíblia Cristã, esta última como resultado da tradução grega.


A obra do agora Prémio Pessoa 2016 e especialista em cultura helénica, estende-se para além dos Estudos Clássicos, abrangendo também a música, o romance, a poesia, o teatro, o ensaio, os estudos bizantinos, a germanística e a história da dança. O escritor e tradutor resume a sua condição à de um ex-católico, alguém que procura a conciliação entre o pensamento racional e a figura de Jesus.


A abordagem que faz ao estudo bíblico existe na tentativa de conciliar racionalmente as dúvidas que o mesmo lhe levanta, a reflexão que faz é necessariamente a de alguém que se interessa profundamente pela religião, pelo cristianismo e pelo texto bíblico. "Tento equacionar em que consistem as dúvidas que me impedem de me afirmar como cristão, ou crente, a cem por cento. Outro problema é o da lente transfiguradora, através da qual a vida de Jesus é narrada nos quatro evangelhos. Sempre como prova de que as profecias estavam a ser cumpridas em tudo o que Jesus fez e não fez. Quando começamos a olhar mais aprofundadamente para essa relação — entre aquilo que foi a vida de Jesus e aquilo que os evangelistas narram —, somos constantemente levados a perguntar: este facto que está aqui a ser narrado é ou não verdadeiro? Há, constantemente, um véu entre aquilo que verdadeiramente aconteceu, que eu gostaria de saber o que foi, e a minha leitura. Esse véu é a interposição do texto do Antigo Testamento, que está a criar constantemente uma barreira entre a vida de Jesus e nós, que estamos a tentar compreender o que foi a vida de Jesus. Isso impede-nos de saber o que realmente se passou.", explicou o tradutor numa conversa com Frei Bento Domingues a convite do jornal Público em dezembro de 2015. A propósito do anúncio do prémio, António Guerreiro, cronista do Público, referia-se ao premiado como "alguém que vive desde a infância em estado de Babel, movendo-se entre línguas e entre artes. Mas sempre concedendo um privilégio ao clássico e ao apolíneo.". Ainda no mesmo texto, Guerreiro escrevia que o empreendimento humaníssimo de Lourenço é essencial para o debate teológico "num país como o nosso, em que sempre se praticou muito mais o catolicismo de catequese do que a leitura bíblica e a reflexão teológica".


A figura do premiado ocupa a partir de agora um lugar cimeiro no Panteão de tradutores e estudiosos da literatura da Antiguidade Clássica em território nacional. O valioso contributo de alguém que demonstra um profundo amor e cuidado às letras, à palavra e à magnitude humana e intelectual da Antiguidade. Um verdadeiro filólogo.



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