Na Áustria, a esperança ainda persiste!
O passado domingo, dia 4 de dezembro, pode muito bem ter tido, por alguns, como o dia em que uma maioria de eleitores decidiu dar uma chapada de luva branca na cara dos "inimigos da liberdade". Falo naturalmente das presidenciais austríacas que deram a vitória (pela segunda vez) a Alexander Van der Bellen, de 72 anos, que assume de agora em diante o papel de Presidente Federal da Áustria e que semelhança do sistema português, muito pouco pode fazer, à excepção da possibilidade de dissolver o Parlamento e exigir eleições legislativas, podendo também vetar ministros e condicionar em larga medida os futuros governos, não obstante, os poderes presidenciais contemplam ainda a hipótese de governar por decretos de emergência, por um período máximo de 4 semanas.
Do outro lado da corrida presidencial, estava Norbert Hofer de 45 anos, candidato pelo partido de extrema-direita austríaco, o Partido da Liberdade (FPÖ). O partido que se apresentou como anti-sistema (mais um), apesar de o próprio Hofer já ter integrado um Governo entre 2000 e 2005, a prestação resume-se à recitação de um discurso contrário à realização de uma boa política de acolhimento e asilo para refugiados. Em suma, o confronto entre os que insistem em ver nos refugiados e nos imigrantes a tão temível ameaça a tudo o que seja resquícios da cristandade europeia e ao confortável estilo de vida do qual muitos europeus ainda se podem orgulhar, e os que, mais dotados de "bom senso" e racionalidade, persistirem na valorização do espírito europeu como garante dos valores civilizacionais basilares a uma sociedade de orientação progressista e livre de correntes e agrilhoamentos. Fundamentalmente, o lado certo da História.
No entanto, os austríacos contra grande parte das sondagens que se mostravam contraditórias quanto ao resultado final, decidiram dar uns confortáveis 53,3% a Van der Bellen e uns preocupantes 46,7% de Hofer. Esta foi a segunda vitória do professor e assumido europeísta, a primeira deu-se no dia 22 de Maio igualmente contra Norbert Hofer. E mais uma vez as sondagens davam uma garantida vitória a Hofer, e que, felizmente, acabou a perder para Van der Bellen por três mil votos. Para encontrarmos um cenário diferente é necessário ir até à primeira volta das presidenciais austríacas 2016 marcadas pela vitória de Hofer com 35% dos votos na primeira ronda por oposição aos pouco confiantes 21,3% do agora recém-eleito Presidente.
Na primeira volta estiveram também em jogo outras forças políticas, curiosamente, Rudolf Hundstorfer, candidato social-democrata do SPÖ, que se ficou com uns insignificantes 11,3% e Andreas Kholl candidato pelo Partido do Povo, ÖVP, a força conservadora de centro que não superou os 11,1%. Tanto os social-democratas como os conservadores não conseguiram passar a fasquia dos 12%, facto que não lhes permitiu passar à segunda volta. É importante que o leitor perceba que estamos a falar de dois partidos que desde a II Guerra Mundial partilham entre si a governança da Áustria (um pouco ao jeito português - PSD e PS) e que desde 2008 passaram a governar em coligação. Nestas eleições conseguiram juntos pouco mais de 20%. O mau resultado foi tal que levou Werner Faymann, chanceler austríaco eleito em 2013, a pedir a demissão. Para a substituição, o SPÖ nomeou Christian Kern, que tomou posse na passada terça-feira e espera-se que fique até 2018.
Uma das grandes conclusões que se retiram desta fase, não é estranha à maior parte dos leitores, uma vez que a constatação da erosão dos centros políticos parece ser cada vez mais um facto dado como consumado. Os partidos tradicionais, os chamados "partidos do centrão" estão em decadência. Uma decadência mais acelerada numas latitudes do que noutras, mas começa a ser certo que poucos são os partidos do centro, os que também tradicionalmente apelidados de "partidos do arco da governação”, possam continuar a resistir sem que apresentem mudanças programáticas visíveis ou candidatos fora do espectro tradicional. No caso austríaco em particular, a importância da crise de refugiados é menor face à inércia governativa que o bloco central (e falo portanto das alianças entre sociais-democratas e conservadores) tem mostrado nas últimas décadas. A política de centro na Áustria está à beira de ser uma curiosidade do passado. Para obter tal ideia basta olhar para as ainda prematuras intenções de voto que a FPÖ lidera com cerca de 30% para as legislativas de 2018, tendo obtido mais de 20% nas legislativas de 2013. A reversão da situação está dependente da prestação do novo chanceler, o senhor Kern tem agora a hipótese de reverter a situação, ou pelo menos de corrigir a imagem que os austríacos criaram dos seus partidos/políticos de sempre. Se o governo abraçar a necessidade de reformas e se os dois partidos entrarem numa lógica de cooperação, em vez de estarem constantemente a bloquear-se um ao outro como têm feito nos últimos anos, talvez o resultado seja diferente do que se espera. Mais uma vez, a ascensão da extrema-direita aos lugares cimeiros de poder está dependente da capacidade dos partidos centrais tomarem medidas de correção da erosão de padecem, isto é, há que contabilizar a possibilidade de os próprios alargarem as suas bases, dando cobertura às ordens de descontentamento que inundam os espaços políticos ocidentais.
Olhe-se para o caso americano e britânico que conclusão será muito diferente, apesar de não se registar o fim do bipartidarismo, há uma evidente mudança/reconfiguração tanto dos partidos cotados à direita como à esquerda. No caso americano, o prémio vai para o partido republicano (incluindo as bases) que conseguiu apresentar à corrida o candidato certo para o momento actual. Já do lado Democrata o mesmo não se pode dizer, que apesar de apresentar a melhor candidata, não era de todo a mais indicada para o momento. Bernie apresenta-se assim como o único capaz de derrubar Trump. O caso austríaco é um dos melhores exemplos que se pode dar para a aceitação desta ideia, Hofer igualado a Trump e Bellen igualado a Bernie recria a narrativa de que só candidatos fora do espectro tradicional se podem igualar, felizmente que na Áustria o lado certo venceu o confronto.
Mas voltando ao jogo eleitoral que terminou no passado domingo. Com a passagem à segunda fase do processo eleitoral, o debate ficou reduzido à dialética entre a visão pró-europeia e o discurso de negação face aos refugiados e à União Europeia. E só no dia 22 se dá a prova dos nove ou pelo menos assim se esperava. Os resultados demoraram a chegar, dado que em causa estavam 900 mil votos por correspondência (valendo 14% do eleitorado).
Mas para surpresa de alguns, o ecologista e decano da Universidade de Viena, doutorado em Economia que começou inicialmente a sua atividade política entre os social-democratas do SPÖ (aproximou-se dos Verdes nos anos 80), declarou-se como o vencedor, mas só por breves momentos. Depois de mastigar a vitória do adversário a extrema-direita decide contestar os resultados, alegando irregularidades na contagem dos votos por correspondência. Com a intenção de assegurar a legitimidade política daquele que poderia ser o próximo chefe de Estado, o Tribunal Constitucional decretou no início de julho a invalidação do processo eleitoral e marcou novo plebiscito, originando a repetição da segunda volta.
Na investigação ao acto eleitoral do dia 22, os juízes do Tribunal Constitucional não encontraram fraudes ou manipulações no escrutínio, apesar de as várias negligências na contagem dos votos nas urnas e nos de correspondência acabarem por denegrir o resultado. Os inquéritos e as audições do tribunal deram conta que dezenas de milhares de boletins da votação por correspondência foram contados de forma irregular, dado que a mesma aconteceu fora das horas legais e foi levada a cabo por pessoas não autorizadas, sendo esta uma prática corrente. A contagem de votos por correspondência só estava autorizada a partir das 09:00 de segunda-feira, 23 de maio, mas algumas assembleias de voto começaram a contar mais cedo. Os votos por correspondência representaram 16,7% dos sufrágios apresentados.
Caso a vitória de Van der Bellen fosse validada, o mesmo deveria assumir as funções presidenciais no dia 8 de julho, como tal não aconteceu, as funções presidências foram asseguradas até domingo passado interinamente pela presidência da câmara baixa do parlamento austríaco liderada por Doris Bures (SPÖ, Social-Democrata) e os dois vice-presidentes, Karlheinz Kopf (ÖVP, Partido do Povo) e Norbert Hofer (FPÖ, Partido da Liberdade) do Conselho Nacional.
Entre a decisão da repetição das eleições e o dia 4 de Dezembro muito se especulou sobre quem seria o vencedor. Até porque pela primeira vez, o presidente não seria um candidato proveniente dos dois partidos tradicionais e a expectativa do que daqui poderia decorrer não dava descanso a ninguém. Ainda o dia não tinha terminado e já os europeus repousavam os seus receios. Ulrich Kelber, vice-ministra da Justiça alemã e social-democrata escrevia no Twitter que: “Talvez a vitória de Donald Trump tenha sido o ponto de viragem. A maioria liberal está a reagir". Não, não, a vitória de Donald Trump não foi e nem será ponto de viragem nenhum, a vitória de Van der Bellen foi, sobretudo, a vitória da maioria liberal que ainda existe e soube estar à altura do confronto, para tal permitiu que alguém que suprimisse os medos e os receios que "os inimigos da liberdade" sistematicamente tentam ressuscitar e representar, tomasse a dianteira.
O ônus continuará do "lado certo da História" e nas suas escolhas, que quando, bem feitas, se mostram vencedoras. No fundo, é tudo uma questão de "bom senso", inteligência e muito, muito amor à liberdade!