Um muito pequeno abraço a António Costa
É Natal, ou pelo menos, estamos a dias do único momento do ano em que a reunião de família à volta de uma mesa recheada de iguarias, que vão desde o famoso perú ao sempre indispensável bacalhau, é matéria de total prioridade na ordem do dia. É necessariamente uma época que convida à reflexão, à experiência interna e sobretudo, à passagem em revista dos acontecimentos da agenda anual. Neste último ponto, grande parte da imprensa nacional e internacional parece andar desde há muitos anos alinhada com esta intenção, de tal modo que nesta data são vastíssimas as listas, textos, análises e tudo o mais, que percorrem a vastidão de acontecimentos anuais, mensais, semanais e diários. Proponho aqui, seguindo-me da mesma intenção, revisitar e elaborar algumas notas a propósito daqueles que foram os pontos mais marcantes, uns mais simbólicos, outros mais práticos é certo, dos novos tempos ou para clarificar, da ainda curta vida do governo de António Costa.
A par da política de reversões e retrocessos que se acentuou nos últimos meses de 2015 e os primeiros do "governo geringonça", o ano de 2016 não foi muito diferente em matéria de erros, equívocos e trapalhadas, com o episódio da Caixa Geral de Depósitos à cabeça. Os casos dos Secretários de Estado que viajaram a convite da Galp para Paris, as licenciaturas que afinal não eram bem licenciaturas (o adjunto do gabinete do Primeiro-Ministro, Rui Roque, que se demitiu em outubro. Ainda no mesmo mês, foi a vez de Nuno Félix, chefe de gabinete do Secretário de Estado do Desporto e da Juventude, se demitir devido à apresentação de duas licenciaturas falsas).
Em plena época de Silly Season (um nome que também é sinónimo de verão) e enquanto meio país se encontrava a braços com fogos, António Costa e Constança Urbano de Sousa (Ministra da Administração Interna) aproveitavam os longos dias de descanso a que julgaram ter direito sem proferir uma única declaração ou um curto "lamentar" pela situação. Face ao silêncio destes dois, restou a Augusto Santos Silva (Ministro dos Negócios Estrangeiros) fazer a possível defesa do Governo, tarefa difícil dado que tinha o Ministro do Ambiente a proferir obscenidades políticas do género: "podia ser pior". Perante o devastador cenário dantesco, o Ministro achou por bem considerar que tudo aquilo podia ser pior. No final do já tradicional episódio de verão, lá tivemos a graça de ver os dois governantes a reagir à crise que acalmava. Ficaram os devidos agradecimentos (que apesar de tudo serão sempre insuficientes) às corporações de bombeiros e a destruição deu lugar à reconstrução. À ordem natural replicada vezes e vezes sem conta, restava esperar pelo próximo, para aferir se a novela "Fogos de Verão" poderá continuar por mais uma temporada.
Já depois de passada a época mais silly do ano, ficamos ainda a saber que a posse de imobiliário avaliado em 500 mil euros é razão suficiente para aplicação de mais uma taxa, ainda muito antes deste salutar atentado à propriedade privada, o pós-silly season ficou também atordoado pela inesperada surpresa da majoração até 20% na "boa vista", a faltar mesmo ficou a definição do que é boa vista. Não vá o fiscal das finanças considerar que um apartamento com vista para o Tejo tem uma "má vista".
Mais histórias haveria para contar, desde as salutares bofetadas que o Ex-Ministro da Cultura, João Soares, pretendia dar ao cronista do jornal Público que se atreveu a criticá-lo pelo infeliz episódio da demissão do anterior director do CCB, até ao desconhecido amigo (Diogo Lacerda Machado) de António Costa que o ajudava a desbloquear "pedras no sapato" como a solução para os "lesados BES" ou o dossiê da renegociação da privatização da TAP, aparentemente um amigo ao serviço do Estado sem contrato com o Estado, só uma mais machadada na imagem governamental, algo que parece não preocupar António Costa. Como se diz na gíria, "soma e segue" alegremente, galopando pelas sondagens e acenando aos "amigos" que lhe sustenta a empreitada governamental. Resta a Catarina e Jerónimo beliscarem-se um ao outro para ver quem recolhe mais eleitorado nas próximas eleições, cientes de que a geringonça pode terminar nas próximas eleições, tudo dependerá da falta que BE e PCP fizerem ao PS. Entretanto Costa continuará a passar por entre os pingos da chuva, mas 2017 não será um ano fácil, as boas graças do comissário Moscovici não durará para sempre. Mas aguardaremos, serenamente, lembrando Pinheiro Azevedo "Calma que o Povo é sereno! O Povo é sereno!".
Resta-me neste compasso da leitura avisar o leitor de que chegamos ao momento de dar um muito pequeno abraço a António Costa. Esquecendo tudo o resto, há três momentos que me levam a dar este pequeno abraço ao Primeiro-Ministro que, desde os primeiros dias anda "coixo" em matéria de legitimidade política (atenção que a "legitimidade política" diverge em larga escala da "legitimidade constitucional"), deve-se à afirmação da Escola Pública, à intransigente consagração da defesa dos assuntos de liberdade individual e a reposição do estatuto conferido à Cultura. A par de todos os disparates cometidos na pasta, a elevação da Secretaria de Estado da Cultura à condição de Ministério da Cultura foi um avanço significativo no âmbito da devolução do merecido prestígio à pasta. É certo que as razões da escolha do pequeno João para Ministro não se mostraram tão evidentes quanto se desejavam, com uma pequena passagem pela o universo das letras com a fundação da editora Perspectivas & Realidades (P&R), o filho de Mário Soares não foi de todo a escolha mais acertada. Já o actual Ministro, resulta de uma excelente escolha para um Ministério demasiado irrelevante para a importância que deveria ter.
O segundo momento a destacar resulta da inclusão da opção do tema do aborto nas aulas de Educação Sexual. O aborto deve ser entendido como uma opção, uma opção que remete de imediato para a consagração da liberdade do indivíduo no seu corpo. Algo que, infelizmente, não é alheio de crítica de certas facções ideológicas, mais retrógradas e distantes de qualquer interesse ou objectivo progressista, exemplo disso é a petição que circula por entre as redes sociais que postula a retirada do tema da interrupção voluntária da gravidez do programa/referencial. O objectivo é claro, impedir que o tema do aborto seja visto como uma liberdade, uma opção, por crianças de 5º e 6º ano. A aprendizagem do que é uma interrupção voluntária da gravidez e de como esta se distingue da interrupção involuntária é essencial para o pleno conhecimento da temática em causa. Espera-se que os Ministérios da Educação e da Saúde não cedam perante a doutrina que alimenta esta petição, já que não souberam recuar aquando do caos e do erro, que não o façam agora.
Sobre o último momento, apraz-me lembrar que este foi o governo que decidiu pôr fim a um enorme sistema privado parasita do sistema público, falo, naturalmente, do corte de financiamento a escolas privadas em zonas onde paralelamente se verifica a existência de oferta pública. No fundo, o fim da duplicação de financiamento que possibilita a restituição das devidas verbas à Escola Pública. Uma réstia de coerência e instantaneamente percebemos que ao Estado compete apenas a manutenção da sua oferta e a regulação das outras. Parece importante lembrar que o investimento na Escola Pública é uma das únicas vias possíveis para o aprofundamento da importância da escola e da educação na vida das crianças e adolescentes. Não se prende desfiar aqui a importância da escola pública, mas é sempre bom lembrar que a ela muitos sucessos lhe devemos, um dos mais importantes, a Liberdade, tal como dizia Bernardino Machado, "uma escola de liberdade". Só a incapacidade política de Tiago Brandão Rodrigues faria a posição ganhar a devida razão pelo caos que lançou no sector.
António Costa merece um muito pequeno abraço por estes pequenos momentos, infelizmente, uma pequena gota no vasto oceano de erros e trapalhadas.
Este artigo de opinião é da responsabilidade do Autor. O Cacique está recetivo a todas as ideologias políticas, ou seja, todas estas terão a oportunidade de serem defendidas!