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2016, as notas finais...


Lamento informar, mas a filmografia de Spielberg está incompleta. Há, em particular, um filme que lhe falta realizar. Um filme onde o mestre do crime e o culpado das atrocidades seja simplesmente uma mancha assassina de nevoeiro, um certo tipo de fumaça que impediria a percepção clara dos acontecimentos e que acabaria por produzir conclusões erradas e decisões precipitadas. No fundo, uma sublimação da realidade dos nossos dias. É inequívoco o facto de que hoje, mais do que nunca, a produção de uma percepção clara, estruturada e independente dos acontecimentos diários é indispensável à existência das chamadas boas decisões, algo que infelizmente também se revelou mais difícil.


O Mundo mudou e continua a mudar, nada que seja novidade, pois o mundo sempre andou em mudança (e se assim não fosse perderia todo o interesse), 2016 apenas nos traz a noção de que afinal a mudança pode ainda ser mais rápida do que pensávamos poder ser. Há uma espécie de aceleração da História, da geopolítica, dos conflitos e do Mundo em si, as evidências de tudo isto estão nos milhares de artigos, nas notícias estampadas nos jornais, nas televisões, em todo o lado e especialmente nas redes sociais. A rapidez com que a História se faz é possibilitada pelo que a tecnologia passou a oferecer, do twitter ao Facebook, até ao aumento da conectividade/comunicação entre pessoas foi um passo. E o ponto é precisamente este, mais comunicação forjada pela rapidez e abate da distância gerou um outro tipo de comunicação, mais permanente (a qualquer momento o sujeito pode receber uma mensagem no telemóvel ou no messenger de facebook, ou ainda fazer um tweet), mais rápida (tudo é instantâneo) e de acesso livre, a internet levou à criação em si mesma de um espaço não físico, onde todos querem estar, traduzindo-se quase numa necessidade. "Eu quero estar, onde os outros estão", frase que de imediato abarca a concepção das redes sociais como uma derivação do espaço público físico, tal como a blogosfera o foi no passado, simplesmente, dos blogs passámos para as redes sociais. Redes essas que não nascem do instante facebook, há outros momentos que desenham a história da rede social, como o da familiaridade com a internet com as conversações online permitidas pelo antigo MSN da Microsoft, ou até mesmo das primordiais salas de chat.


Há, portanto, um certo tipo de comunicação que emerge das profundezas do desenvolvimento da rede, da tecnologia que lhe está associada e da familiaridade que a internet passou a adquirir no seio das nossas casas. Uma comunicação que não deixa de revelar a nova dualidade, os "lentos" e os "rápidos". Dicotomia que coloco aqui para que o leitor perceba que existe hoje, na rede, dois principais comportamentos, os que reagem à notícia instante (que pode ir à reacção do simples like até à partilha e anexação de palavras furiosas) e os que simplesmente a utilizam para vislumbrar um bocadinho de Mundo, quer seja através das opiniões que os outros transeuntes dão à concepção ou ao rasto de notícias que vão correndo enquanto percorremos o feed de notícias. Uns centram-se na rapidez da produção da sua própria opinião, os outros mais preocupados em reagir com alguma qualidade, acabando por se mostrarem cuidadosos com a qualidade e pertinência dessa mesma reacção.


O comportamento dos primeiros conduziu ao mundo do pós-verdade, a palavra que em 2016 ganhou corpo, rosto e dimensão. A adulteração do conceito de verdade instala um novo risco, o das notícias falsas (as “fake news”), criadas a partir de nenhures e levadas aos mais diversos cantos da rede, tudo graças à divina criação algorítmica. Um título arrasador, texto pequeno e conteúdos falsos são os ingredientes para uma notícia falsa. Bastará apenas colocá-la na rede e esperar que o número de visualizações dispare. Daí até às secretárias de alguns jornalistas é um passinho.


Os media (alguns) começaram a cair no engodo e transformaram-se em produtores de notícias, precipitados pela urgência em ser o primeiro a oferecer a notícia. Mas é também nos media e no jornalismo que reside parte da solução, na tão afamada campanha norte-americana, a influência dos media como a revista The Atlantic ou até mesmo do New York Times sempre foi a da reposição da verdade, algo que os apoiantes de Trump, sistematicamente melindravam e sites como o Breitbart (refúgio de muitas alarvidades da direita norte-americana) serviram na campanha como produtores de pós-verdades contra uma certa parte dos media que se preocupou sempre em desfazer as pós-verdades. Uma campanha que se centrou nos temas errados. Os fact-checkers passaram a ser importantes em todas as redações, esperemos que não voltemos a abdicar deles, o mundo do pós-verdade não dará tréguas.


O homem da multidão de Edgar Allan Poe é, talvez, uma das melhores obras capaz de nos induzir um certo pingo de lucidez sobre a realidade. O homem que observa a multidão, outra dicotomia possível de extrair aos dias correntes, a dos observados e observadores. A história continuará a ser marcada pela distinção entre a solidão e a multidão, tal como sempre foi, sendo que, só agora a multidão passou a contar com outra localização, a rede, onde se propaga o nevoeiro que Spielberg precisa de colocar no grande ecrã e para tal, como no grande teatro de Brecht, nos ajude a interiorizar o nevoeiro como realidade e nos impeça de permitir que o mesmo continue a obliterar a nossa visão.


Até 2017, e que a festa comece...


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