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"Soares é Fixe"


"Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo."

As palavras são de Sophia Mello Breyner e fazem parte de um dos poemas de referência ao 25 de Abril. Acontecimento que se funde com a biografia de Mário Soares, associação imediata e paralela a outras. Também Soares emergiu do "silêncio" do exílio, chegando a Portugal três dias depois do dia maior da Liberdade em Portugal, o "comboio da Liberdade", assim ficou conhecido o eufórico comboio que devolveu Soares, Maria Barroso (sua mulher) e muitos outros ao país que então começava a ver horizontes maiores. Novamente em Portugal, Soares e tantos outros, puderam ser "livres e habitar a substância do tempo". O exílio terminava e era tempo de construir um Portugal melhor, sobretudo, um país de Liberdade e Progresso.


Mário Alberto Lopes Nobre Soares, nome maior da Democracia Portuguesa, figura ímpar e única da Política. Um Político no mais puro dos sentidos, um verdadeiro animal político dizem muitos. Viveu sempre para a política, respirava política e por ela foi preso 12 vezes, perfazendo um total de três anos de cadeia, deportado sem direito a julgamento para a ilha de São Tomé, em 1968, e exilado em França, em 1970. 7 de dezembro 1924, o dia em nasce, até 7 de janeiro de 2017, dia em que morre. 92 anos de vida, dois dias, dois anos, uma vida, uma existência imortal. Visto por muitos como o Churchill português ou comparado a Roosevelt ou De Gaulle, Soares não dirigiu Portugal em tempo de guerra, mas travou em conjunto com outros tantos, uma das maiores batalhas de Portugal, a da conquista pela Liberdade. Nasceu dois anos antes do golpe militar de 1926 e viveu uma vida inteira no subjugo da negra e cinzenta ditadura que atirou Portugal para anos de atraso e humilhação. Um país subjugado às mãos de um vil homem, tacanho, de mentalidade pequena, pacóvio e rude, um país que contracenava com a viva figura do homem que amava a Liberdade, era sempre a Liberdade e que tal como tantos outros, o homem que viveu inteiramente comprometido com as suas causas.


Foram muitos os combates, as prisões, a deportação, o exílio, a descolonização, o PREC, os conturbados tempos do verão quente de 1975, os tempos de governo (tanto no provisório como nos dois chefiados por sim), as corridas a Belém (na vasta galeria de vitórias coleccionadas por Soares deverá constar o facto de ter obrigado Álvaro Cunhal a dar-lhe apoio, fazendo com que Cunhal voltasse atrás com a sua própria palavra, um feito inédito dada a rigorosa personalidade do histórico dirigente comunista). Não se poderá indicar com clareza qual terá sido o seu primeiro combate, a lista é enorme e não há uma linha exacta para traçar o instante zero. Mas o último combate ainda está presente na memória de muitos de nós, em 2006 na campanha presidencial que levaria pela primeira vez Cavaco a Belém, Soares decide enfrentar, mais uma vez, o escrutínio dos portugueses. Uma prova do carácter do homem que não recusa uma disputa, com cerca de 80 anos, certamente com metade da energia de outros tempos e com um adversário que não se avizinhava fácil, Mário Soares, o homem que dizia que era feio perder em política submeteu-se à luta, sem certezas de que venceria. Perdeu, mas sem perder as vitórias do passado.


Recusou sempre a figura senatorial, continuou a participar politicamente, nunca se afastou do partido que criou. A sua influência estendia-se aos mais diversos lugares da política nacional, sinônimo da unanimidade de reconhecimento à volta da personalidade. Naturalmente, era à Esquerda que recolhia as suas tropas e força política, tratava-se pois do homem que reafirmou junto de Cunhal, no mítico debate de 4 horas (algo impensável nos dias de hoje, se tivermos em conta a possibilidade de fumar em estúdio como se podia ver pelo cigarro aceso que os moderadores ostentavam nas suas mãos enquanto apresentavam o debate) que o PS era um partido de Esquerda. Mesmo que se acuse Soares de ter colocado o "socialismo na gaveta". O próprio definia-se como um Republicano, Laico e Socialista. Um exemplo de afirmação de personalidade política num tempo em que a maioria era católica e o socialismo olhado com maus olhares. A herança de um Portugal velho e amordaçado (o título de uma dois mais irónicos livros de Mário Soares, Portugal Amordaçado) era rejeitada perante a hipótese de um Portugal moderno onde os cidadãos se sentissem donos dos seus próprios destinos, valorizando a auto-determinação dos portugueses, algo que Soares parece representar, encontra expressão nas décadas de progresso, liberdades, direitos e garantias que o país registou à medida que o tempo ia avançando.


Por esta altura muitos darão como finalizado mais um ciclo político, o dos fundadores da Democracia. Creio que sim e poucas dúvidas tenho do contrário, no fundo, é a morte material de um dos três grandes. A Sá Carneiro, Álvaro Cunhal junta-se agora Mário Soares. Tratando-se também do afastamento do homem político diferente de outros tantos, do homem político marcado por uma erudição monumental, que versava frequentemente sobre literatura, arte, história, cinema e sobre tantas outras criações humanas. Escreveu livros e viveu rodeados pelos livros dos outros, reservando também para si a marca do homem de letras. Um bem escasso na política de hoje.


Neste exacto compasso do texto certamente que a/o leitor/a já terá dado conta de que o que leu anteriormente é na mais modesta essência um conjunto de notas sobre Mário Soares como homem de força e causas que era e político de letras e pensamento que sempre soube imprimir no seu habitus. Tendo deixado fora de alcance desta pequena reflexão o papel de Mário enquanto governante, acreditando que o seu papel na dissolução da elevada crispação política que marcou o pós-25 de Abril, na solução desenhada para o dossiê da descolonização, na aproximação de Portugal ao eixo Europeu através dos esforços iniciados na qualidade de Primeiro-Ministro e terminados já como Presidente da República em 1986, será algo a ficar sobre a alçada do julgamento da história e da ideologia própria de cada um. Os factos valem por si só e o exercício de análise do governante deverá sempre ser remetido para a balança da História.


Para muitos de nós, ficará sempre a dimensão humanística natural de alguém que viveu para a política, não com um sentido de carreira, mas como voz de ideais próprios e ideias de alguém que de certo, gostou e amou o seu país. Um patriótico sem a imposição abrupta do política de isolacionismo. Nos próximos dias e semanas muito se lembrará a propósito do histórico democrata e socialista, muito se dirá e muito se julgará, artigos e leituras não faltarão. No fundo, assistiremos à cristalização da memória do mais importante político português do século XX. Dos testemunhos dos amigos (e tinha muitos, especialmente gente da arte, da literatura e da cultura, também uma raridade no círculo de amigos dos políticos de hoje) às memórias de quem se habituou a Mário Soares como político e homem. Percorreremos a história contemporânea portuguesa com a afirmação do orgulho que é ter nascido no país de Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Ferreira do Amaral e muitos outros. Um orgulho em afirmar com total liberdade que Portugal é um país de Futuro e com Futuro.


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16ª Edição Revista Pacta

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