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MAQUIAVELISMO NO SÉCULO XXI ​


A História é a ciência que tem na sua génese a relação do Homem, enquanto agente (dotado da faculdade de realizar uma ação que produz consequências), com o Tempo e o Espaço, na qualidade de dimensões em que o agir humano se materializa. Neste registo, na indiferença que inevitavelmente nos difere, há quem se evidencie face aos outros - no domínio político, económico ou cultural, entre tantos outros. E, nesta reflexão, interessar-me-á abordar o domínio das ideias políticas, com um nome que carrega consigo uma obra incontornável: Niccolò Machiavelli.

O Secretário Florentino tem um papel fundamental no campo das ideias políticas e, porventura, mais do que nunca, será essencial regressar ao seu pensamento. E será fundamental, neste sentido, perguntar (1) se o maquiavelismo está vivo no século XXI e (2) qual o campo de ação em que se manifesta. Numa era em que o devir que a sociedade imprime em si mesma é pautado pelo ritmo da batuta da comunicação social, recorro às palavras de António Bento*, que afirma que “(…) o controlo político da comunicação social é hoje (…) um assunto suficientemente sério para que possa ser entregue, sem mais, nas mãos apenas dos seus profisisionais - tanto nos profissionais da política como nos profissionais da comunicação política.” É neste contexto e plano, sobretudo, que descubro a necessidade e importância de compreender Machiavelli. Conhecer a sua obra permitirá um diálogo mais profícuo com o mundo e um melhor entendimento das suas dinâmicas, questionando o real propósito de toda e qualquer ação (a nível político, mormente).

Fruto de um contexto espacio-temporal único e rico (a época do Renascimento e da imensa fragmentação e divisão política e territorial da Península Itálica), as suas ideias refletem todas estas influências (e outras, que remeto para a curiosidade do leitor). É neste terreno fértil que surge a sua descrição da arte de governar. E é, também, neste terreno fértil, que ganha relevo a grande diretriz que norteia o pensamento maquiaveliano: a relação entre ética e política e a sua reescrita por Machiavelli, apologizando a separação destas duas vertentes. Na ótica do florentino, a convivência humana tende para a desunião - não para a união, pelo que haverá um conflito iminente entre as duas esferas que se relacionam no contexto do Estado: os poderosos, com o seu desejo de dominar; o povo, com o seu desejo de liberdade.

É por esta conceção da natureza humana que se guia para descrever o poder exercido pelo príncipe - um poder cuja moral se pauta por impulsos egoístas (em benefício próprio) e pelo pragmatismo. Os objetivos secundarizam quaisquer princípios morais porque, na perspetiva de um governante, o caráter ético das suas atitudes é determinado pela sua finalidade política - poderão existir vícios benéficos ao Estado e virtudes que lhe sejam prejudiciais. Tudo será válido, desde que o objetivo seja o de manutenção do Estado e do status, i.e., do poder (como refere Quentin Skinner). E, para este fim, será necessário um conjunto de qualidades (onde podemos elencar, de acordo com Charles Bensoît, características como o egoísmo, a indiferença, o egotismo, o calculismo ou a capacidade de simulação e dissimulação) - é a isto que chamamos Virtú.

Ainda que não possamos reduzir o pensamento maquiaveliano a estes dois parágrafos, estaremos aptos a responder às duas interrogações iniciais: (1) sim, o maquiavelismo permanece vivo; (2) o seu campo de ação verifica-se quotidianamente, na banalidade do recurso à mentira política e, em determinados regimes e países, no emprego da força coerciva do Estado e da violência (nas suas vertentes física, psicológica e, como veremos, virtual). Por isto, o panorama político atual é rico em príncipes que manifestam, quotidianamente, as ideias de Machiavelli, conformando-se com o mal, se a isso se virem obrigados - “os fins justificam os meios”.

Na China, a censura e as barreiras virtuais que o regime de Xi Jinping coloca à informação (queimando livros e bloqueando vários sítios da internet e temas de pesquisa, como ‘Democracia’), em nome da “honra e dignidade do país”, não são ilustradoras de uma ação que, de acordo com a matriz valorativa democrática, se considere moral; no entanto, permitem ao príncipe manter o Estado e o seu poder, impedindo o contacto das populações com ideias que visem derrubar o regime.

Durante o mandato de George W. Bush, sob o pretexto de combater o terrorismo e difundir os valores da paz e democracia, os EUA invadiram o Iraque e o Afeganistão. Todavia, hoje, é de senso comum que os verdadeiros motivos foram a avidez de petróleo, a manutenção do seu governo e a evidência da supremacia bélica americana; não foi uma ação que possamos considerar moral - porém, aos olhos de Machiavelli, Bush seria um líder com Virtú.

No verão de 2016, na Turquia, o pretenso golpe de Estado falhado foi a justificação de que Erdoğan se serviu para executar uma purga que prendeu 35 mil pessoas, despediu 15 mil funcionários e encerrou 550 associações e 9 órgãos de comunicação social; ainda que aos nossos olhos seja uma ação moralmente incorreta, consolidou e aumentou, efetivamente, o poder deste príncipe.

Estes exemplos impelem-nos, sobretudo, a estar atentos ao mundo em que vivemos, para que não aceitemos passivamente as verdades que nos mascaram. Por isto, para terminar, recorro a uma citação de Ernst Cassirer, filósofo alemão: “Machiavelli não escreveu para Itália, nem sequer para a própria época, mas para o mundo.”


*Doutor pela Universidade da Beira Interior (UBI)



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