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Desgaste

O dia vai terminando e o desgaste psicológico aumenta exponencialmente após mais um dia desta rotina inócua e altamente questionável. Um café asqueroso e aguado de máquina automática queima-me o esófago e enoja as minhas vísceras. Estou sem paciência e vou descarregar a ira no bloco de notas mais próximo.


O leitor siga o meu raciocínio: eu bem sei, lá no fundo nunca dedicou demasiado tempo da sua vida a reflectir no propósito da mesma. Ambos sabemos que distribuiu a sua vida por fases, fases essas delimitadas pela idade às quais atribuiu objectivos a atingir. Provavelmente tornou-se um quadro médio de uma empresa no sector privado ou um mero funcionário administrativo do Estado, emprego onde ganha o suficiente para satisfazer os seus prazeres de merda. Pertence a uma classe média em clara erosão, paga os seus impostos, resmunga em frente à televisão da sua sala perante notícias relacionadas com a corrupção de banqueiros e políticos. Ao fim de semana passeia pelo centro comercial mais próximo e vislumbra roupas de que não necessita, acabando por as comprar na mesma pressionado por incontroláveis impulsos consumistas e pela tentação de impressionar pessoas que na verdade apenas o querem ver pelas costas. O leitor só quer ser aceite perante a sociedade e perante o seu espelho do quarto, não é?


Repare que está perto de atingir a idade de reforma e toda a sua vida foi procedimentalizada e dividida geometricamente. Que entre os vinte e os trinta casou, que depois dos trinta arranjou um par de filhos e contraiu uma panóplia vasta de empréstimos junto da banca. Trabalha das nove às seis e vê paulatinamente a relação com a sua mulher degradar-se de dia para dia. Está casado não pelo amor que nutre pela criatura mas sim pelos encargos que tem com a banca. Preenche a monotonia do quotidiano com programas de debates futebolísticos e políticos desprovidos de qualquer sentido e proveito para si, mas acaba por dar audiência a todo o lixo televisivo fabricado em bruto, para que possa aliviar um pouco a cruz de viver uma vida miserável. Vive enclausurado pela ditadura da vida saudável. Apetecia-lhe quiçá um bife de vaca sangrento, fumar um cigarro depois de uma alheira de Mirandela, mas continua a comer bagas de Goji para passear o seu físico atlético na praia mais próxima de si. Foge do cancro a sete pés e pretende perpetuar o seu estilo de vida saudável em busca de uma imortalidade inexistente.


Mais de metade das suas condutas são efectuadas com o pensamento direcionado para o que a sociedade pensará de si. A sua vida foi levada assim, a vida de milhares de seres humanos foi levada assim e continuará a ser levada assim. A metrópole vislumbra-se ao longe, milhares de blocos de apartamentos vão escoando escravos do neo liberalismo que se esfumam entre a neblina matinal, com um comportamento e linha de pensamento idêntico.


Já não há esperança, é deixá-los a morrer.



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